Edu:
Muita gente saindo dos principais clubes, outros chegando, Madrid sem técnico,
os jogadores dos times médios deixando o país e até uma denúncia do Fisco
contra o Messi. Vocês terão um verão 'movido'...
Carles:
Essa é a ideia do “grande comitê superior do homem branco”, falem bem ou mal,
mas falem de mim. A porta de saída tem funcionado freneticamente não só para a
gente do futebol, mas para todo tipo de profissionais, e de todos os níveis. Sem
ir mais longe, uma leva de jovens arquitetos já foi para o Brasil de forma não
programada e agora tem a história dos médicos. Seguro que ‘no nos aburriremos’.
Edu:
São novas consequências da crise, você diria? Primeiro os arquitetos, os
médicos, e agora os jogadores de futebol? Em outros tempos, um dos grandes
contrataria tranquilamente um jogador como o Jesus Navas, típico classe média
do futebol. Mas o City foi mais rápido e levou fácil. Assim como Joaquim, indo
para a Fiorentina. Continua sendo uma sequela da indecência das hipotecas e do
descontrole político?
Carles:
O Madrid manifestou seu interesse por Navas até o fim, mas ele preferiu sair do
país. Navas é um caso a parte, de clara evolução pessoal, e amadurecimento gradativo.
Quando jovem passou por algum episódio de ansiedade, abriu mão de uma ou outra
convocação para a seleção. Um dia a gente conversa sobre ele com maior
profundidade. Não acho que sejam novas, seguem chegando as consequências, desencadeando
outras, alastrando-se por diversos setores. Eram esperadas inclusive. Também
não estou de acordo com que haja um descontrole político, há um controle claro
e patente. O Partido Popular tem maioria e dentro do próprio partido, o grupo
mais conservador, muito ligado à igreja, ao opus dei, ganhou o braço de ferro
com outros setores. Se existe um aparente descontrole político é pela disputa de
poder, pela crise da esquerda, pela briga interna no PP, entre conservadores e
neoliberais, como disse. O descontrole é econômico e isso repercute no futebol,
obviamente. Ah, e tem mais crise
institucional, da monarquia, importante elemento dramático nesta trama toda.
Edu:
Huuuumm, mexi num vespeiro, um dos seus temas preferidos. Quem segura um
autêntico espanhol nessas circunstâncias? É claro que o precipício produtivo/financeiro
tem tudo a ver com o futebol por aí, também porque é um traço dos costumes
espanhóis: tudo no mesmo balaio, nada acontece desconectado das outras
realidades. Não é normal dois clubes ganharem quase 60% de tudo o que o futebol
movimenta. Tem retrato de desigualdade mais gritante que esse no mundo do
esporte?
Carles:
Foi-se o tempo em que a sociedade espanhola mostrava uma certa igualdade. Só
nos tempos de penúria. Com os novos ricos, chegou a desigualdade. Mas isso não
é novidade nenhuma, nem privilégio daqui. Nem precisa ser gênio para entender,
quando a verba pelos direitos de transmissão televisiva eram distribuídos de
forma igualitária (não equitativa, para tentar amenizar os efeitos das
diferenças, mas em quinhões iguais) a disputa esportiva era mais diversificada,
campeões de liga distintos, as diferenças não eram tão evidentes. Chegou o ‘aznarismo’
e, com ele, a lei do mais forte, cada vez mais forte. Continuo sem contar
nenhuma novidade. O problema e também a demonstração de falta de inteligência,
é que a médio e longo prazo um sistema assim acaba quebrando e com ele todos
seus componentes, inclusive os mais fortes que também dependem dele para
sobreviver. Uma hora ou outra a água bate na bunda deles também, se já não
bateu. Agora, nem justiça social, nem a alegria de tempos de pompas e
circunstâncias do ‘aznarismo’ (arreda!!!). Só a triste realidade dos carolas.
Edu:
Temo que vocês nunca saberão, porque essas coisas do meio privado chegam
atravessadas para a sociedade em qualquer circunstância. Ainda mais se
estivermos falando de futebol, que é uma caixa preta. E isso vale tanto para
Florentinos quanto para Rosells. De qualquer jeito, parece, algumas
instituições ainda funcionam e estão de olho nas grandes movimentações, do contrário
não pegariam de vez em quando algum incauto. Agora foi Messi, mas em outros
tempos foram Nadal, Figo e até o falecido golfista Seve Ballesteros, que teve que fixar
residência em Mônaco. Ou você acha que é só uma embalagem para dar sensação de
que a justiça está atenta?
Carles:
Não mesmo. Existe uma urgência em se demarcar do tsunami da corrupção que
assola o país. Muitos fazem isso de forma ostensiva, como por exemplo, o
presidente da Generalitat Valenciana (órgão de governo do estado autonômico
regional), que tem realizado ações sistemáticas de caça à corrupção inclusive
ou principalmente dentro do próprio partido. Honestidade? Não creio que a virgem de Fátima tenha
aparecido para nenhum deles e tenha provocado sua repentina transformação.
Lorota? Tampouco. Os alarmes soaram e a vigilância da sociedade se multiplicou
(não havia outra opção). Portanto, é uma questão de sobrevivência política.
Edu:
Então, para resumir esta pensata sobre a conjuntura espanhola, te pergunto
objetivamente: com mão de obra qualificado deixando o país, clubes pequenos
minguando, os grandes fazendo negócios estranhos e megalômanos e, por isso,
mantendo uma aparência de competição de elite e atraente, o que será do futebol
campeão do mundo a curto prazo?
Carles:
A seleção nacional sempre foi um poderoso trunfo na mão de sistemas corrompidos,
por isso não acho que haja uma ameaça imediata. Pese as evidentes diferenças, remito-me
ao Brasil de 1970, tricampeão e dono de um futebol espetacular. É só repassar
mentalmente o que aconteceu com a estrutura esportiva do país, depois disso. Os
torneios viraram moeda de câmbio para favores e conchavos políticos e as
seleções brasileiras ficaram muito tempo na fila. A Espanha vive uma das suas
piores crises financeiras, morais e políticas. Nesse contexto, toda a
infraestrutura que foi erguida a partir dos anos 80 começa a sofrer da falta de
recursos para atualização e manutenção. Entretanto, ainda dispomos de instalações poliesportivas dignas de primeiro
mundo, em cada bairro. Essas instalações, inclusive, foram responsáveis por
grande parte os triunfos do esporte espanhol, pela formação das atuais gerações
ganhadoras. Se vamos recuperar a normalidade política e econômica antes que
tudo isso fique obsoleto eu não sei e não conheço ninguém que saiba.
Edu:
Só não concordo com a analogia com a situação brasileira durante a ditadura,
foram dois tipos distintos de tragédias. Mesmo porque nunca tivemos ótimas
instalações esportivas mesmo antes da ditadura. Mas voltaremos a esse tema
'caliente'...
Carles: Sem dúvida, muito distintos. A intenção da comparação era
mesmo escandalizar, antes que seja tarde.
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