Carles: Ouço e leio os comentários sobre a crise
do futebol brasileiro ao mesmo tempo que percebo que vocês (e nós) seguem
consagrando os jogadores brasileiros que jogam pelo meio. Os momentos
vitoriosos mais recentes (e alguns não tanto) do futebol brasileiro estão
ligadas a esse jeito de "comer pelas beiradas", ou seja, graças a uma
grandíssima e brilhante safra de laterais revelados nas últimas décadas. Não
seria a atual carência desses loucos alas, famosos no mundo inteiro, motivo de
reflexão sobre a - se é que existe - atual crise?
Edu: Se formos rigorosos - e somos - não há
crise nas laterais, ou crise ‘de’ laterais. E quando há, é produzida pelos
próprios treinadores, dos quais voltaremos certamente em breve a falar. Você
deve estar se referindo aos laterais brasileiros que estão por aí, teoricamente
indiscutíveis nos principais times espanhóis - Dani Alves, Adriano, Marcelo
(quando não está linha de tiro do Mourinho, como agora). Já andaram fazendo
relativo sucesso Fábio Aurélio, Maxwell, hoje em Paris, Maicon, os irmãos que
atuam na Inglaterra, Fábio e Rafael. É uma certa fartura mesmo. Mas como
explicar que na Copa de 2010 jogou na lateral-esquerda um ponta improvisado,
Michel Bastos?
Carles: Na verdade, os que você citou são todos
já consagrados. Estava me referido a novos valores. Eu, desconheço. Mas sem
querer você antecipou uma das minhas teorias sobre essa carência, a
reconversão. Praticamente nenhum lateral brasileiro que chega à Europa deixa de
experimentar, isso quando não muda definitivamente para posições com maior
prestigio dentro do time. Quem sabe isso voltou a criar certa rejeição pelas
laterais na garotada que começa a jogar.
Edu: Não entendi. Esses que estão aí
experimentaram pouco dessa mudança. Daniel andou jogando de ponta com Guardiola,
Marcelo fez alguma função eventual de meio-campista mas voltou à lateral, até
porque gosta da posição. Quem mais? Quem efetivamente participou dessa
reconversão recentemente?
Carles: Durante muito tempo, todos os que
chegavam viravam ou ponta ou interior, como se diz por aqui - Mazinho,
Leonardo, o próprio Marcelo, Alves naquele Sevilha que conquistou títulos.
Mesmo Zé Roberto, hoje no Grêmio.
Edu: Ah sim, a geração anterior foi mais
chegada à reconversão.
Carles: Claro que o posicionamento tático preponderante
na Europa, com interiores (meias abertos) que bloqueiam a descida dos laterais,
inibe justamente a maior qualidade dos laterais brasileiros. Mas foi justamente
essa geração a que acabou influenciando para que cada vez menos garotos
quisessem jogar de lateral e começar em outras posições. E nem todos tem
talento para isso. No fim, nem laterais eficientes, nem meio campistas
brilhantes.
Edu: Considero que os laterais funcionam como
essencial válvula de escape em esquemas táticos rígidos, mais ainda nos clubes
europeus. Um lateral na Inglaterra não funciona como na Espanha ou na Alemanha,
mas é sempre uma saída. A vantagem dos que foram depois dessa geração mais
talentosa é que se 'europeizaram' mais fácil, alguns sem perder as
características, como o Marcelo, que vejo ainda como o lateral com mais
recursos técnicos do mundo. Mesmo Dani Alves e Adriano, que atuam em um time no
qual o jogo nunca é pensado na zona lateral do campo, se enquadraram porque
desempenham funções típicas europeias, de complementação, mas com um toque
brasileiro. Maicon nos bons tempos da Inter foi a mesma coisa.
Carles: Alves e Adriano sim, funcionam no Barça
como válvulas de escape, jogo alternativo. Voltando à minha argumentação do
início, talvez, durante muito tempo no futebol brasileiro, os laterais não
foram simplesmente uma alternativa, mas a principal fonte de jogo, mesmo como
mera ameaça ou isca para que os jogadores do meio acabassem sendo decisivos. Ou
seja, virou um vício.
Edu: Vamos a um período anterior ainda. Uma coleção
da Editora Contexto, lançada há quatro ou cinco anos, denominada 'Os 11
Melhores', traça um perfil dos grandes nomes da cada posição no futebol
brasileiro. O volume que aborda os laterais, escrito por um ex-colega e grande
amigo, Paulo Guilherme, inclui entre os 11 de todos os tempos alguns que tinham
totalmente essa vocação de meias - Júnior, Leandro, o próprio Leonardo, mesmo
Branco, que funcionava bem como ala, e Cafu, que era na origem meia direita. Ou
seja, dos 11, cinco meias. E outros dois tão inteligentes que, se quisessem,
poderiam ter sido meio-campistas sem sustos: Nilton Santos e Carlos Alberto
Torres.
Carles: É provável que Nilton Santos e Carlos
Alberto sejam historicamente os grandes inspiradores dessa função, mais que
posição, mas jogavam em times com um montão de outras alternativas. Por isso,
insisto: em que momento a lateral passou a ser a melhor opção e não mais uma
para os times brasileiros? E, segundo essa teoria, o passo seguinte teria sido
a ‘lateraldependência’ e, ato seguido, uma baixa na produção de material
humano. O processo continua evoluindo, em prejuízo de alternativas táticas nos
times brasileiros, incluída a Seleção. Mas é só uma teoria pessoal.
Edu: Já houve muito, mas hoje em dia já não
vejo mais essa dependência dos laterais nos grandes times brasileiros. Quem
sabe seja mesmo por falta de revelações neste momento, até porque um lateral
que se destaca aqui tem imediatamente mercado fora. E se manda sem pensar duas
vezes. Só tem um lado bom que precisa ser reconhecido: obrigou os técnicos a
buscar alternativas, colocar a cabeça para funcionar. Se bem que essa talvez
seja a grande crise: técnicos pensando.
Carles: Pois é, por isso eu defini como um
vício, não dos jogadores, é obvio, mas de quem orientava e formava. Mas tem
outro lado bom, a grande safra de laterais brasileiros chamou a atenção do
mundo inteiro para a importância de se usar essa zona de forma estratégica e
decisiva. Com inteligência e não só com vigor físico.
Edu: Ou seja, uma eficientíssima válvula de
escape. Só para completar, a relação de 11 melhores laterais do livro, além dos
sete já citados, tem Vladimir, Nelinho, Roberto Carlos e Djalma Santos.
Carles: Grande seleção!
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