sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013

Viagem às profundezas da Espanha


Edu: Amigos que trabalham com futebol e me encontram de vez em quando me fazem sistematicamente a mesma pergunta, sabendo de meus vínculos com a Espanha: como os dois times de futebol mais ricos do mundo estão em um país com um quarto da população desempregada e com uma economia raquítica? Como se eu soubesse a resposta.

Carles: Primeiro, acho que todos deveríamos renovar nossos conceitos socioeconômicos. Nada é tão definitivo. Deveríamos deixar de confundir fronteiras com fundos de investimento e bancos, para o bem de todos. Deveríamos tentar identificar com clareza tudo isso. Dito isso, tentemos analisar a questão do esporte e do seu financiamento mais de perto.

Edu: Começou muito hermética essa resposta, mas prometo me esforçar para entender.

Carles: E eu, vou me esforçar para ser mais mundano.

Edu: Vamos lá...

Carles: Os sistema político se corrompem, vendem-se a interesses particulares e levam os países à bancarrota. Essa história estamos fartos de conhecer. A sociedade, pelo jeito, está obrigada a responder e enfrentar as consequências como coletivo mas isso não implica poder usufruir de eventuais benefícios. É coisa para poucos. Se a Caja de Ahorros (Caixa Econômica) del Mediterráneo vai à falência respondemos todos, mas se o Real Madrid, através de um golpe que envolve seus próprios dirigentes, consegue que a cidade de Madrid requalifique os terrenos onde estão instaladas as suas dependências esportivas, vende para a especulação imobiliária e se transfere para outro local periférico - mais desvalorizado e com isso gera um tremendo lucro -, certamente isso não repercute a toda a sociedade porque, claro, é uma instituição privada. Fui um pouquinho mais claro?

Edu: Suponho então, no caso do Real Madrid que a fortuna galáctica vem de uma operação espúria no mercado imobiliário por parte de seus dirigentes? Isso bastou para ser o time mais rico do mundo? O presidente Florentino Peres já não era rico? O clube já não era riquíssimo antes de Florentino? Responda sem o seu viés catalão, porque torcedor do Barça falando do Real sempre termina em boletim de ocorrência...

Carles: Sim, na primeira gestão, e por isso é que perdoam todas as cagadas esportivas ao Florentino. Já sei qual a sua próxima pergunta: e o Barça?

Edu: ... é uma ilha de honestidade?

Carles:  O Sandro Rosell (presidente) vocês conhecem bem. Trabalhou numa multinacional no Brasil, com tantas suspeitas em seus negócios que tornou impossível a convivência, na mesma frase, do próprio nome com a palavra honestidade. Não é uma ilha de honestidade nem muito menos, mas existe uma convicção no Barça, muito além da realidade, fundamentada na auto crença de uma ética que eles mesmos proclamam como muito mais que um clube, referindo-se à representação da cultura catalã. Isso, quer queira, quer não, cria um compromisso institucional. Muito diferente da base moral que permeia a conduta do Real Madrid. Não digo qual é melhor, mas, qual dos dois demonstra maior solidez - o Barça, sem dúvida.

Edu: Opa, opa, opa! Parece o presidente da Generalitat discursando. Eu diria que é uma análise nada isenta.

Carles: Provável, acredito mais na filosofia ‘culé’. Está mais ligada ao meu sangue, imagino. Posso estar errado ou comprometido, mas de uma coisa tenho convicção: dos pecados do Real Madrid. Outro que venha e fale dos pecados ‘blaugranas’, não sou capaz, hehehe. Admiro a instituição que, parece, sobrevive à governança do Rosell.

Edu: Provocação à parte, não é possível que você não leve em conta que o Real Madrid, o presidente Florentino e sua turma, e toda a comunidade espanhola que torce por aquele clube, sem necessariamente viver em Madrid, também fazem parte de uma instituição, cujos valores eles cultuam e prezam. E nem sempre têm visões ideológicas parecidas nem comungam da corrupção que, segundo você, é o que move aquele clube.

Carles: Os "aficionados merengues" merecem respeito, mas a história de favorecimentos ao clube se arrasta desde os tempos franquistas e isso é sabido. Se tivessem tido a mesma oportunidade, os sócios do Barça teriam feito a mesma coisa? É possível. E também é possível que o curso da história tivesse sido outro. O vitimismo de catalães e bascos durante o franquismo sem dúvida, afastou-os do poder, da prepotência, tornou-os mais combativos e críticos e esse pode ser um dos motivos. Mas seria leviandade tentar fazer uma análise tão importante em poucas linhas. Assim mesmo, permita-me tentar evitar o maniqueísmo de insinuar que os do Madrid são os bandidos e os do Barça, os mocinhos. É óbvio que não é tão simples.

Edu: Agora não dá mais tempo. Já insinuou, já falou, não adianta mais. Tocar no assunto franquismo já basta. Projetando para o futebol, é Guardiola contra Mourinho, Puyol contra Pepe, Messi contra Cristiano - mocinhos contra bandidos.

Carles: Então o maniqueísmo está na associação ou desassociação com o tirano? É nossa obrigação pensar assim. Ditaduras nunca! A gente sempre enxerga essas páginas da história como algo absoluta e totalmente negativo. Os defensores, procuram encontrar justificativas, como por exemplo, melhora de índices econômicos, crescimento industrial, etc. Ambos sabemos do que estou falando.

Edu: Sabemos bem... E eu que pensei em fazer uma pergunta singela lá no início.

Carles: Singela para um cidadão que mora num país com os dois clubes mais ricos, com a seleção campeã do mundo e do continente, numa economia débil e um dos mais altos índices de desemprego? Acho que já vivi isso em outro tempo e em outra latitude

Edu: Carlão, o Generalíssimo foi um câncer para toda a Espanha, como nós tivemos os nossos tumores por aqui. Várias gerações sentiram na pele a fúria da ditadura franquista, não importa onde as pessoas viviam na época. Temos parentes que morreram de norte a sul. O país virou um banho de sangue. Quem viveu em Madrid sofreu igual e sofre até hoje, porque o madrileno foi estigmatizado. Ou não? Não é possível ter essa visão reducionista de ver o Real Madrid como a síntese de um ditador que promoveu uma carnificina.

Carles: Não me refiro ao sofrimento, mas à sua percepção. É diferente em cada canto do território espanhol.

Edu: Ok, é suficiente. Pensei em responder aos meus amigos que o Real Madrid e o Barça não são, na verdade, a cara mais autêntica do futebol espanhol, e sim o Zaragoza, o Depor, o Gijón e sei lá mais quem que está à míngua com a crise financeira. Mas acho que não vou dar mais essa explicação. É muito frugal depois da sua longa pensata.

Carles: Coisa de espanhol. Você pergunta que tal?, e ele explica!!!!!!!

Edu: Vou lembrar disso...

Nenhum comentário: