domingo, 10 de março de 2013

Fé cega ou jogo de cena?


Carles: Recordo da final de um mundial sub-20 em que a Seleção Brasileira de Dani Alves, Adriano e Nilmar venceu na final a Seleção Espanhola de Iniesta por 1 a 0. Finalizado o jogo, os brasileiros fizeram uma roda no meio do campo e, de joelhos, rezaram, dando graças aos céus. Paco Gonzales, então comentarista da Cadena Ser, um pouco por ter perdido o jogo e outro pouco para se somar às críticas da perseguição à crença islâmica, disse que, se aqueles atletas fossem muçulmanos, certamente seriam chamados de fanáticos. O que você acha dessa demonstração ostensiva de crença ou apego no futebol?
Edu: A cena foi herdada da final da Copa do Mundo de 2002, também com o Brasil campeão e todo mundo rezando o pai-nosso no centro do campo. Mas a Fifa proibiu esse tipo de manifestação entre os profissionais pouco tempo depois, talvez pensando nas reações como a do Paco, que não deixa de ter certa razão. Sinceramente, não acho que esse tipo de manifestação de religiosidade coletiva programada acrescente alguma coisa ao futebol. Uma manifestação individual ainda é compreensível, embora também não me agrade. Mas o futebol já tem símbolos e rituais suficientemente ricos para precisar de algo mais.
Carles: Por certo, Paco sempre pousou de progressista e hoje está na Cadena Cope, pertencente à igreja. Fico pensando nos goleiros ajoelhados rezando antes do início dos jogos. Qualquer dia algum ateu espertinho vai tirar vantagem disso.
Edu: Tem um lance aí de respeito pelas escolhas e pela livre manifestação, né Carlão. Fazer o quê? Mas isso não quer dizer que o futebol fique culturalmente mais rico por causa disso, nem mais pobre. Na verdade, para quem acompanha o futebol de perto, esses apelos não deveriam ter grande significado, exceto em casos excepcionais e, insisto, que sejam espontâneos. O torcedor percebe quando é espontâneo.
Carles: Espero que perceba. Só não estou tão certo disso como você. Inclusive parece-me uma espécie de indução. Mas não acha que essa atitude dos jogadores brasileiros dá uma pobre imagem do país? Da sua capacidade intelectual, por exemplo?
Edu: Os brasileiros com seus gestos religiosos, você diz?
Carles: Isso, ostensivos… Na Copa de 1970, Jairzinho celebrava os gols com o sinal da cruz, imitando, ele mesmo admitiu, Ladislav Petras, jogador checo quando marcou contra o Brasil. Então não era essa manifestação invasiva de agora. Eu me sinto invadido. Talvez pela minha relação tão próxima ao país, claro.
Edu: Isso deixa os caras estigmatizados, sem dúvida. E incomoda bastante quem analisa friamente. Pessoalmente acho uma tremenda chatice, e fora de contexto, essas demonstrações vazias de fé pasteurizada. Mas o que o europeu talvez não consiga ver é que aqui se tornou algo natural, algo com que os torcedores convivem de forma visivelmente tolerante, sejam de que religião for, ou também se forem ateus, agnósticos, ímpios ou que seja. Não acho que o torcedor seja induzido por isso, sinceramente.
Carles: Também não acho que a solução seja proibição dessas manifestações, é claro, nem a tal proibição da Fifa à que você se refere, mas essa questão acho que está muito relacionada com a nossa série "Boleiros politizados", que poderia ser também "Boleiros que leem". Se o futebol é algo tão estratégico, poderia ser melhor aproveitado como exemplo, ao contrário dessa indiferença com relação às demonstrações de fanatismo religioso. Repito, sem proibições, com consciência e esforço coletivo.
Edu: É o tipo de coisa que um técnico habilidoso e de bom senso e um clube minimamente organizado conseguem resolver, sem apelar para a proibição, que em princípio é deplorável em todas as instâncias. Uma boa negociação pode evitar constrangimentos. Mas também é preciso reconhecer que o futebol é uma instituição social generosa, habitado por um conjunto de grupos que vêm de vários segmentos e talvez esse caráter pluralista ainda seja a sua principal característica, quem sabe sua salvação. Nem que tenhamos que engolir algumas coisas. O que não exclui o fato de que, assim como a censura, alguns exageros também são deploráveis.
Carles: Tolerância, claro, entendo. No outro dia vi o treinador interino do Barça, o Roura, fazer o sinal da cruz antes do jogo. É algo que não condiz com a imagem do Barça combativa como a maioria da Catalunha, diante de um franquismo aliado da igreja. O problema para o Roura é que acabou prevalecendo a lei dos homens e o Barça tomou três surras seguidas, incluídas algumas discutidas decisões arbitrais. Ou será que é a lei de Murphy, se algo tem que sair errado, sairá. Talvez no caso do Barça, a lei das probabilidades, depois de tantas vitórias seguidas, estatisticamente as derrotas certamente virão?
Edu: Nossa! Sinceramente não consigo enxergar toda essa complexidade. Para mim o sinal da cruz do Roura significa só o apelo a um símbolo católico - de proteção, ou medo, ou insegurança. Não mais que isso. Talvez seja minha incapacidade pessoal de detectar essas pequenas conspirações do dia a dia. Mas me rendo a esse seu talento.
Carles: É inegável a ligação do medo e da insegurança às crenças religiosas, mas compreenda que nossa atual situação política reencarna velhos fantasmas ligados justamente à igreja e ao poder. Assim mesmo, considerarei como um elogio. Um bom domingo e proponho uma visita ao museu na hora da missa.
Edu: Não haverá museu, desta vez. Mas, fique tranquilo: missa muito menos.

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