Carles:
Recordo da final de um mundial sub-20 em que a Seleção Brasileira de Dani
Alves, Adriano e Nilmar venceu na final a Seleção Espanhola de Iniesta por 1 a
0. Finalizado o jogo, os brasileiros fizeram uma roda no meio do campo e, de joelhos,
rezaram, dando graças aos céus. Paco Gonzales, então comentarista da Cadena
Ser, um pouco por ter perdido o jogo e outro pouco para se somar
às críticas da perseguição à crença islâmica, disse que, se aqueles atletas fossem muçulmanos, certamente seriam
chamados de fanáticos. O que você acha dessa demonstração ostensiva de crença
ou apego no futebol?
Edu:
A cena foi herdada da final da Copa do Mundo de 2002, também com o Brasil
campeão e todo mundo rezando o pai-nosso no centro do campo. Mas a Fifa proibiu
esse tipo de manifestação entre os profissionais pouco tempo depois, talvez
pensando nas reações como a do Paco, que não deixa de ter certa razão.
Sinceramente, não acho que esse tipo de manifestação de religiosidade coletiva
programada acrescente alguma coisa ao futebol. Uma manifestação individual
ainda é compreensível, embora também não me agrade. Mas o futebol já tem
símbolos e rituais suficientemente ricos para precisar de algo mais.
Carles:
Por certo, Paco sempre pousou de progressista e hoje está na Cadena Cope,
pertencente à igreja. Fico pensando nos goleiros ajoelhados rezando antes do
início dos jogos. Qualquer dia algum ateu espertinho vai tirar vantagem disso.
Edu:
Tem um lance aí de respeito pelas escolhas e pela livre manifestação, né
Carlão. Fazer o quê? Mas isso não quer dizer que o futebol fique culturalmente
mais rico por causa disso, nem mais pobre. Na verdade, para quem acompanha o
futebol de perto, esses apelos não deveriam ter grande significado, exceto em
casos excepcionais e, insisto, que sejam espontâneos. O torcedor percebe quando
é espontâneo.
Carles:
Espero que perceba. Só não estou tão certo disso como você. Inclusive parece-me
uma espécie de indução. Mas não acha que essa atitude dos jogadores brasileiros
dá uma pobre imagem do país? Da sua capacidade intelectual, por exemplo?
Edu: Os
brasileiros com seus gestos religiosos, você diz?
Carles:
Isso, ostensivos… Na Copa de 1970, Jairzinho celebrava os gols com o sinal da
cruz, imitando, ele mesmo admitiu, Ladislav Petras, jogador checo quando marcou
contra o Brasil. Então não era essa manifestação invasiva de agora. Eu me sinto
invadido. Talvez pela minha relação tão próxima ao país, claro.
Edu:
Isso deixa os caras estigmatizados, sem dúvida. E incomoda bastante quem
analisa friamente. Pessoalmente acho uma tremenda chatice, e fora de contexto,
essas demonstrações vazias de fé pasteurizada. Mas o que o europeu talvez não
consiga ver é que aqui se tornou algo natural, algo com que os torcedores
convivem de forma visivelmente tolerante, sejam de que religião for, ou também
se forem ateus, agnósticos, ímpios ou que seja. Não acho que o torcedor seja
induzido por isso, sinceramente.
Carles:
Também não acho que a solução seja proibição dessas manifestações, é claro, nem
a tal proibição da Fifa à que você se refere, mas essa questão acho que está
muito relacionada com a nossa série "Boleiros politizados", que
poderia ser também "Boleiros que leem". Se o futebol é algo tão
estratégico, poderia ser melhor aproveitado como exemplo, ao contrário dessa indiferença
com relação às demonstrações de fanatismo religioso. Repito, sem proibições, com
consciência e esforço coletivo.
Edu:
É o tipo de coisa que um técnico habilidoso e de bom senso e um clube
minimamente organizado conseguem resolver, sem apelar para a proibição, que em
princípio é deplorável em todas as instâncias. Uma boa negociação pode evitar
constrangimentos. Mas também é preciso reconhecer que o futebol é uma
instituição social generosa, habitado por um conjunto de grupos que vêm de
vários segmentos e talvez esse caráter pluralista ainda seja a sua principal
característica, quem sabe sua salvação. Nem que tenhamos que engolir algumas
coisas. O que não exclui o fato de que, assim como a censura, alguns exageros
também são deploráveis.
Carles:
Tolerância, claro, entendo. No outro dia vi o treinador interino do Barça, o
Roura, fazer o sinal da cruz antes do jogo. É algo que não condiz com a imagem
do Barça combativa como a maioria da Catalunha, diante de um franquismo aliado
da igreja. O problema para o Roura é que acabou prevalecendo a lei dos homens e
o Barça tomou três surras seguidas, incluídas algumas discutidas decisões
arbitrais. Ou será que é a lei de Murphy, se algo tem que sair errado, sairá. Talvez
no caso do Barça, a lei das probabilidades, depois de tantas vitórias seguidas,
estatisticamente as derrotas certamente virão?
Edu:
Nossa! Sinceramente não consigo enxergar toda essa complexidade. Para mim o
sinal da cruz do Roura significa só o apelo a um símbolo católico - de
proteção, ou medo, ou insegurança. Não mais que isso. Talvez seja minha
incapacidade pessoal de detectar essas pequenas conspirações do dia a dia. Mas
me rendo a esse seu talento.
Carles: É
inegável a ligação do medo e da insegurança às crenças religiosas, mas compreenda
que nossa atual situação política reencarna velhos fantasmas ligados justamente
à igreja e ao poder. Assim mesmo, considerarei como um elogio. Um bom domingo e
proponho uma visita ao museu na hora da missa.
Edu:
Não haverá museu, desta vez. Mas, fique tranquilo: missa muito menos.
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