sexta-feira, 19 de abril de 2013

Contra a hipocrisia, saborosas traições


Carles: Um comercial atual de um banco daqui mostra Julia Otero, jornalista muito conhecida, entrevistando juntos os ex-jogadores Luís Figo e Luis Enrique sobre a decisão "del cambio", da mudança. Eles foram os pivôs de decantadas ‘traições’, ao Barça e ao Real Madrid respectivamente, por terem decidido trocar um time pelo outro. Existem casos de fuga para o inimigo com tamanha repercussão por aí?
Edu: Vários, o último foi o de Paulo Henrique Ganso, que se mandou para o São Paulo. A torcida do Santos exigiu que a figura dele fosse apagada do muro do clube, que contém imagens em homenagem aos craques. E o primeiro jogo de Ganso na Vila Belmiro com a camisa do novo clube foi um inferno... É compreensível que a torcida tenha essas sensibilidades, mas no fundo é uma atitude até meio moralista e conservadora.
Carles: Sem dúvida é conservadora. A gente trai uma causa, em todo caso, mas não um empregador. Guardadas as devidas proporções, eu mesmo já ouvi coisas desse tipo de algum chefe tentando sensibilizar-me o que, convenhamos, é ridículo, é chantagem barata. De todo jeito, até é compreensível por parte da torcida que, no fundo, acaba sendo instrumento útil (desculpe pelo uso da frase feita, estigmatizada pela ditadura)  dos dirigentes dos clubes…
Edu: A hostilidade das torcidas também varia de jogador para jogador, depende da atitude do cara ao trocar um rival pelo outro. Figo foi acintoso, provocativo - e gerou ódio acima do comum no Camp Nou. Não me lembro como foi o caso do Luis Enrique. Mas, por exemplo, Michael Laudrup, um cara muito íntegro e transparente, jogou nas duas casas, a blanca e a blaugrana, e não gerou tanta antipatia. O mesmo pode-se aplicar ao Ronaldo Fenômeno, que há pouco tempo aplaudido quando voltou ao Camp Nou em uma cerimônia qualquer.
Carles: Muitos candidatos à presidência do Real Madrid utilizaram como trampolim eleitoral a possível contratação de uma estrela. Se essa estrela jogava no eterno rival, tinha ‘peso dois’. Foi o caso de Figo. O Luis Enrique, na verdade, finalizou contrato com o Real Madrid para depois ir para o Camp Nou. Só que, lá, a carreira dele cresceu e reaqueceu a polêmica. Situação parecida viveu Eto'o, que começou nas divisões inferiores do clube madrileño e acabou no Barça, passando antes pelo Mallorca. O êxito dele no Barça fez os dentes dos madridistas crescerem. Teve também Schuster, Prosinečki, Saviola… E o caso do montenegrino Predrag Mijatović, que foi do Valencia, onde era a grande estrela, transferido para o Madrid causando uma verdadeira revolução da cidade do Turia, a ponto de ser ameaçado e declarado persona non grata por parte da torcida.
Edu: A gente imagina que seja coisa típica de latinos, mas no futebol não é bem assim. Na Inglaterra, em 2006, a saída de Ashley Cole do Arsenal para o Chelsea provocou um pequeno tremor de terra, mesmo porque são equipes da mesma cidade. Seria como Totti trocar a Roma pela Lazio.
Carlos: Ou a recente mudança de Van Persie do Emirates para Old Trafford…
Edu: Mais ou menos como ocorreu com o velho Neto, aqui em Sampa, quando deixou o Palmeiras rumo ao Corinthians no fim da década de 1980. Nesses casos é ainda mais justificável a reação da torcida, embora haja exageros nas manifestações. Cole é recebido até hoje pela torcida dos Gunners com notas de cinco libras nas mãos. E o citado Ganso, quando foi jogar na Vila, recebeu uma chuva de moedas - modestos centavos de real, mas o significado simbólico é idêntico.
Carles: Tem sempre um dos lados interessado em acirrar os ânimos e personalizar a traição na figura do jogador. Para prevenir o possível êxito jogando pelo rival que gera uma cobrança da própria galera. Do outro lado, também não existe ânimo de apaziguar, para poder ressaltar a heroicidade da conquista. No final das contas, seria só uma questão de gestionar adequadamente a situação. Claro, se isso fosse realmente do interesse de alguém.
Edu: E tem um componente hipócrita e demagógico bastante evidente. Cobra-se todos os dias profissionalismo, modernidade e reações maduras no meio futebolístico. E quando um jogador faz isso porque é melhor para sua carreira, como qualquer outro trabalhador, tudo é reduzido a ingratidão e desfeita.
Carles: Exatamente. Esse é o ponto. Essa exigência de uma infundada fidelidade é absoluta hipocrisia que se toma emprestado de valores mais próprios de um militarismo ufano. De certa forma, essa confusão pode ser melhor compreendida pelo espírito épico presente também no futebol.
Edu: Mas, como sempre, o componente humano é o que prevalece sobre o barulho das instituições e da mídia, insisto nisso. Citei o Laudrup e temos aqui, hoje, um exemplo idêntico de uma cara correto, discreto e extremamente competente no que faz – Danilo, já veterano. Nos últimos anos a rivalidade entre Corinthians e São Paulo tem sido mais acirrada até do que entre Corinthians e Palmeiras na maior cidade do país. Pois Danilo, exceto por um pequeno intervalo em que jogou no Japão, foi campeão brasileiro, da Libertadores e mundial no Morumbi e repetiu a dose no ano passado atuando pelo Corinthians. E não se sabe de nenhuma manifestação ardorosa da torcida do São Paulo contra o Danilo. É o cara que se faz respeitar, só isso, não precisa fazer jogo de cena. Se o sujeito entrar na onda do sensacionalismo e estimular picuinhas disfarçadas de indignação, aí a coisa vai degringolar mesmo.
Carles: É, como você disse, hipocrisia daqueles interessados em criar esse tipo de polêmica. E isso fez-me recordar que começamos o papo falando de um comercial de banco. Está tudo em casa.
Edu: Um banco que pergunta sobre a importância de tomar uma decisão na hora certa, é isso? Está explicado...





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