Carles:
Na visão do Europeu médio, ao Leste do Éden fica o inferno balcânico, acúmulo
de estádios habitados por um futebol invariavelmente refinado, de arquibancadas
ameaçadoras e, provavelmente, não tão vencedor quanto merecesse. Depois de
sofrer um sério golpe na capacidade de competir com o traumático processo de redivisão
política, as pequenas repúblicas herdeiras parecem recuperar pouco a pouco o
prestígio e admiração mundial.
Edu:
Há muitas justificativas, todas plenamente aceitáveis, para a instabilidade do
futebol daquela região - se excluirmos a Grécia, que para efeitos geográficos
também pertence aos Balcãs (mas como de refinado o futebol grego não tem nada,
então não conta). É claro que tudo o que aconteceu na ex-Iugoslávia desde a
Segunda Guerra até o fim da década de 1990 atingiu diretamente o jeito de aquele
povo enfrentar as dificuldades, sua conturbada trajetória social, seu olhar
para os vizinhos e o resto do mundo. Ali, nada deixa de ter tem um forte viés
político, religioso, étnico, desde a mistura de culturas da época do império
otomano - e o futebol não é exceção. O interessante, no caso do futebol, é que,
no fundo, os pequenos estados são fiéis a uma característica que mistura
habilidade pessoal e vocação de ataque. Só não têm a organização tática dos
vizinhos ricos do continente.
Carles:
Aparentemente, mais do que uma forma de ver o futebol, é um modo de vida. A
postura feroz e agressiva, antes que preventiva. A busca do objetivo a qualquer
preço. Isso parece claramente refletido na recente história dessa zona
geográfica e de alguma forma nos traços comuns a cada uma das suas ‘tribos’.
Contudo, se a gente observar a evolução de cada uma das seleções, teremos que
dar certa razão a esse veemente interesse em marcar diferenças. O último
emergente, Montenegro, liderando seu grupo na classificação para o Mundial do
ano que vem, pouco ou nada tem a ver com a aquela Croácia, terceira colocada da
Copa de 1998.
Edu: Tanto
que Montenegro deixou numa tremenda saia justa ninguém menos que a Inglaterra.
Essas diferenças entre os estados formados após a guerra sangrenta dos anos 90,
porém, não afetam outra característica comum a todos eles, incluindo Eslovênia
e Bósnia: eficiência para formar mão de obra. É muito fértil aquela escola de
futebol. E tem o handicap cultural
extra de, durante os anos complicados de reconstrução (que, aliás, ainda não
terminaram), ter se envolvido num intenso intercâmbio com quase todos os
centros importantes do futebol. É raro encontrar um grande time europeu que não
tenha ao menos um ou dois jogadores daquela região.
Carles:
Verdade, quase sempre mais do que coadjuvantes e menos que estrelas desses
times. E não por falta de talento. Tenho gostado muito, por exemplo, da
evolução do meio-campista Ivan Rakitić
no Sevilla, apesar da temporada mediana do clube hispalense. É o croata,
nascido na Suíça, mais andaluz que conheço.
Edu:
É claro que ainda temos bem vivos na memória os clássicos jogadores de pouco
tempo atrás, como o refinado croata Boban, o sérvio Stojkovic ou o montenegrino
Savicevic. Mas as últimas gerações, principalmente de croatas e sérvios, tem-se
mostrado menos brilhantes e mais disciplinadas e competitivas, conforme os
traumas daquele período conturbado vão sendo superados. É só ver quem anda
fazendo sucesso por aí, como os croatas Mario Mandzukic, do Bayern, e o seu
amigo Modric, do Madrid. Além de uma boa safra de zagueiros que está na
Premier, comandada pelo sérvio Ivanovic, do Chelsea, mas que tem como maior
promessa Matija Nastasic, 20 anos, do City. Esse é craque.
Carles:
Mandzukic é considerado o grande desfalque do Bayern para o primeiro confronto
contra o Barça, mesmo com o seu "reserva" Mario Gomes fazendo três
gols na terça-feira pela semifinal de copa alemã. Falando em futebol sérvio (ou
iugoslavo), é impossível não lembrar do mítico Estrela Vermelha de Belgrado,
único clube balcânico com um título de campeão continental. E manda seus jogos,
nada mais nada menos, que no “Pequeno Maracanã”. É só uma homenagem ou existe
mais em comum entre o estilo do futebol da região e o da América do Sul?
Edu:
O apelido do estádio tem relação direta justamente com a antiga identificação
dos iugoslavos com estilo do futebol brasileiro. Eles mesmos se auto definiam
como o 'Brasil Europeu'.
Carles:
Tem ainda mais uma proeza desse futebol tão particular, e ao mesmo tempo tão marcado
por fusões de estilos. Na copa de 2006, apesar da independência de Montenegro,
a seleção da Sérvia ainda contava com jogadores montenegrinos o que, segundo
algumas interpretações, considera-se o único caso de um combinado multinacional
a disputar um campeonato mundial de seleções.
Edu:
O que demonstra que tudo o que veio daqueles lados teve algo de originalidade,
depois de tempos tão bicudos. Não é futebol, é basquete, mas ainda assim, para
se ter uma boa ideia do que representaram aqueles anos de crispação e terror,
vale a pena ver e rever o documentário feito pela ESPN, chamado 'Once
Brothers', que mostra a história da amizade rompida, por causa da guerra, entre
dois astros, então na NBA: o sérvio Vlade Divac e o croata Drazen Petrovic, o
Pelé do basquete europeu, morto pouco depois em um acidente de carro. É um
filme extremamente sensível e retrata com precisão o peso das relações humanas
naquela sociedade em transformação, tendo o esporte como cenário de fundo http://www.youtube.com/watch?v=zanji1I7Yd4
Carles:
Boa indicação.
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