Carles:
Na semana de mais um aniversário da Revolução dos Cravos, o que você acha de
falarmos desse incompreensível futebol português, que tantos craques produziu,
mas que não consegue sair da sombra. Exceto por algum e escasso título
continental das suas principais "equipas" e da proeza em Londres
1966, não acabam de se mostrar competitivos.
Edu:
Antes de mais nada, é um problema sério de identidade futebolística, talvez
ligado à própria história do povo português, sempre dividido entre o mundo
exterior, as grandes conquistas navais, e seus dilemas internos mal resolvidos,
tão bem descritos por caras dolorosamente geniais como Camões, Fernando Pessoa
e Saramago. Mesmo a Revolução dos Cravos, que poderia ter se tornado um momento
crucial de transformação (e de fato foi, mas só em parte), conseguiu de certa
forma aprofundar algumas divisões internas. O futebol, como sempre, retrata um
pouco isso: a dúvida entre um jeito mais universal de jogar, voltado para um
mescla saudável com América do Sul e África, e a forma europeia clássica,
próxima aos ingleses, mais mecânica.
Carles:
Uma questão de identidade e não só futebolística, portanto. Mistura de celebração
eterna e essa melancolia tão característica, a Revolução dos Cravos tem a
fisionomia dessa bipolaridade tão característica da cultura portuguesa, conquistadora
e, ao mesmo tempo, submissa. A mais conectada e tolerante com a proximidade
entre Europa e África, talvez. O gosto pela miscigenação é um fato na vida dos
portugueses, ligado obviamente ao colonialismo. Não é a toa que a maioria dos
craques como Eusébio ou o próprio Cristiano Ronaldo tenham surgido das colônias
ou das ilhas.
Edu:
É o que se nota em qualquer conversa com o sempre muito hospitaleiro povo
português quando se trata de se relacionar com os brasileiros, cuja conexão
colonialista dispensa maiores detalhes. O futebol português, como a própria
sociedade lusa, teria tudo para funcionar como uma mescla atraente de culturas,
no fundo é assim, mas parece uma obra inacabada. Se o assunto é apenas jogar bola
então, nem se fale. Entre Eusébio e Cristiano, houve muita gente boa, entre os
quais os mais recentes Luis Figo e Rui Costa, representantes máximos de uma
geração brilhante.
Carles:
Inclusive Rui Costa é a própria expressão dessa dicotomia. Sempre desfrutei de
vê-lo jogar e sempre decepcionou na hora de competir, de recorrer à alma, uma
vez que se esgotam os recursos físicos. Essa parece a postura lusa diante de
todos os momentos decisivos, “a alma a gente reserva só para a boemia”, para as
jam sessions de fado regadas de
vinho. Isso parece estampado no espírito da seleção de futebol. Inclusive
naquela final contra a Grécia, na Eurocopa 2004 que eles mesmos organizaram e
que tinha Felipão no comando. Navegar é preciso e essa proximidade ao naufrágio
parece sempre um estímulo meio masoquista. Já nem sei quantas repescagens eles
tiveram que disputar.
Edu:
Era o que faltava para desmoralizar aquela geração, um técnico que tinha Deco e
Rui Costa no time, mas fez o que fez. E ainda tem a cara de pau de comemorar
até hoje ter sido vice-campeão jogando em casa e perdendo para os ‘poderosos’
gregos. Um pouco daquela decepção está refletida no time de hoje, um conjunto
estranho de jogadores desfribados tecnicamente e ao mesmo tempo herdeiros de um
modelo um tanto tosco de formação de volantes e zagueiros duros. Tanto é que o
único organizador de jogo é um cara até habilidoso, mas inconstante, João
Moutinho, que normalmente tem a companhia de tipos como Raul Meirelles, um
trator. Sem contar a defesa também bastante irregular, onde estão os sutis
Bruno Alves e Pepe, além do seu amigo Fábio Coentrão. Desse jeito, a situação
fica mesmo muito complicada para Cristiano lá na frente, praticamente sozinho.
Carles:
Esqueceu de Nani, outro exemplo desse eterno "quase" do futebol
português. E olha que o rapaz tem ao alcance da mão o vovozão Ferguson, que
pode ser o que for, mas, temos que reconhecer, foi fundamental para que um
talento natural e indisciplinado como Cristiano Ronaldo se transformasse nesse
jogador que é hoje, que sempre quer mais. Muito distante dessa idiossincrasia
portuguesa, não?
Edu:
É verdade, Cristiano é a síntese desse choque de ambições, um tipo insaciável,
que não acaba de se encontrar ao lado dos companheiros de ataque da seleção, o
desajeitado e grandalhão Hugo Almeida, que só funciona pelo alto, e um que
vocês têm o prazer de apreciar aí todo fim de semana, jogando pelo Zaragoza,
Elder Postiga. Além do Nani, que sempre teve habilidade e constância física,
mas cuja máscara é muito maior do que o futebol. É dose. Por isso, temo pela
próxima repescagem no caminho dos lusos nas eliminatórias, já que o grupo
parece que terá a Rússia como campeã, sem maiores dificuldades. Sinto que não
teremos fado e vinho verde por aqui na Copa do ano que vem.
Carles:
Seria uma pena.
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