Carles: Relendo nosso papo “Com
quantos grossos se faz um grande
time”, de 31 de Março, fiquei pensando nessa história dos Arbeloas da vida
que muitas vezes deixam de fora quem mais fez jus a estar. Atualmente, grande
parte da juventude espanhola fugiu da crise para ocupar subempregos em cidades
como Londres. Entre muitas coisas, eles estão aprendendo o significado a
expressão “meritocracia”, em função do reconhecimento dos seus esforços nas
empresas britânicas. Não que UK seja um poço de justiça. Provavelmente, sem
explorar, os britânicos não alcançariam essas condições de estabilidade interna,
baseadas no consumo. Mas, posto isto, ficam patentes as respectivas vocações, as
dos latinos em dar valor ao QI, ou Quem Indica, e dos anglo-saxões em crer-se o
umbigo do mundo.
Edu: Você pintou aí um pequeno quadro
bastante lúcido de um pedaço da crise espanhola, projetada na crise europeia.
Mas onde exatamente entram os Arbeloas nessa história? Você quer dizer que o
futebol está forrado de caras que jogam em grandes times só porque têm
cartucho, o ‘enchufe’, que lhes garanta? Quem são precisamente os grandes
promotores dos cartuchos, os técnicos ou os agentes? Se for isso, eu diria que
a ‘meritocracia’ sempre esteve de alguma forma presente no mercado, não só no
futebol, assim como os promotores dos cartuchos – ou Quem Indica -, e não tem
nada a ver com a crise. A menos que seja apenas uma deficiência espanhola, no
que não acredito.
Carles: Na verdade, o Arbeloa foi minha
inspiração na questão do merecimento. Seja pela mera fortuna de estar no lugar e
na hora certa ou pela razão mais provável, do “enchufe” mesmo. Os diversos
modos de ver a vida, os contrastes da Europa… tudo isso esteve aí este tempo
todo, sim, mas a crise deixou mais evidente. Se não fosse a crise, os
jovens espanhóis provavelmente não teriam despertado para a existência da tal ‘meritocracia’
e seguiriam aguentando as injustiças da seleção a dedo, sem se queixar. “Ver mundo”,
dizem, é a melhor forma de aprendizado, é o que permite desenvolver o senso
crítico. Estar longe de casa faz a gente ter saudade mas faz ver a casa da
gente desde outra perspectiva. Quem parece nunca ser crítico é o medíocre.
Provavelmente, o Arbeloa não questiona a sua convivência com os grandes craques.
No outro dia, quando entrou em campo em Istambul em substituição ao contundido
Essien, logo de cara fez uma falta grosseira, pelo centro e perto da área e
ainda saiu reclamando. Desestabilizou o time que esteve a ponto de perder a
eliminatória praticamente ganha. A humildade não parece santa da sua devoção.
Ou, pelo menos, é o que dá a entender o comportamento dele e da maioria dos
“enchufados”.
Edu: Com outras palavras, você de certa forma
está me dando razão em uma divergência antiga nossa aqui por estas linhas: o
peso específico do indivíduo e de sua fortaleza psicológica como elemento da
construção de seu desempenho técnico para um grupo. Aberloa teve quase sempre
apoio explícito dos treinadores que o comandaram, do contrário não teria essa
empáfia toda. E claramente joga mais por mostrar essa ‘personalidade’ do que
por seus atributos técnicos. Se estendermos a suposta segurança do Arbeloa para
um sujeito que tenha competência técnica, estaremos falando provavelmente um
grande jogador, com lugar garantido em qualquer time de ponta. Seria o encontro
da ‘meritocracia’ com a personalidade forte, com a postura adequada, uma vez
que, como temos visto repetidas vezes – e em qualquer segmento -, só méritos
técnicos não garantem ninguém. Não deveria ser assim, mas é.
Carles: Se ter razão faz você feliz, não seja
por isso… só que eu diria que mais do que personalidade é falta de autocrítica.
É possível até que, diante da consciência de mediocridade, a adoção de uma
postura intimidatória seja uma boa proteção, além do velho e bom cartucho,
claro. Nem todos os que aparentam ter, dispõem realmente dessa fortaleza
psicológica. Casos como Mourinho, Dunga ou Luxemburgo, para mim exemplos claros
de insegurança enrustida. Quem está seguro das próprias possibilidades não tem
a mínima necessidade de zombar do adversário depois de derrotá-lo, por exemplo.
Edu: Evidente que, nesse tipo de cara,
autocrítica passa longe, até em função de a aparência de segurança funcionar
como autodefesa, como forma de escapar de certos temas e de enfrentar as
próprias fraquezas. Mas se o ponto central é ‘meritocracia’, aí temos que
dividir em algumas dimensões os exemplos que você citou. Existem os caras
insuportáveis e que de certa forma conseguiram algo em função do seu trabalho,
embora os meios não sejam do meu gosto e a estética, então, pior ainda. E
existem os metidos que simplesmente são metidos e vão avançando na vida, a
ponto de só serem lembrados por isso (além do enchufe), como é o caso do
Arbeloa. Dunga, que quando jogava nos deixava assustados, é ídolo de muita
gente. O sujeito levantou uma Copa do Mundo e foi capitão do tetra, deve haver
algum mérito nisso. Até como técnico tem admiradores. Mourinho então nem se
fale – na Inglaterra quem não é adepto de Ferguson é adepto de Mourinho.
Carles: Os dois minutos de glória, em alguns casos, duram
anos, é verdade. Os métodos não totalmente éticos ajudam a criar ídolos, sim,
mas ídolos de papel, dos que duram apenas o suficiente para alimentar o
imediatismo das rotativas. É a condição essencial para obter o reconhecimento
público. É como dizia um tal Ruy: “de tanto ver triunfar as nulidades…” Mas o
tempo põe (quase) tudo no seu devido lugar.
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